Opinião | Um alarme de incêndio na madrugada de Londres

Londres

Receber um convite para uma reunion, no meu caso, a celebração dos 10 anos de formatura da minha turma de mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento, na London School of Economics, me levou de volta a um tempo sem amarras e poucos riscos. Relembrar a vida de estudante é reviver as caminhadas ao longo do Tâmisa, o assédio dos donos dos restaurantes indianos em Brick Lane, as corridinhas no ponto de ônibus para espantar o frio e as noites iniciadas na biblioteca, vendo os chineses se acabarem de estudar, e terminadas no The Three Tuns, um dos pubs da faculdade, o lugar para tomar a cerveja mais em conta na City, o tradicional bairro no centro de Londres.

Tinha 24 anos, uma mala, um quartinho, sete vizinhos de várias partes do mundo e passei a negociar as pequenas e grandes coisas, vivi um amadurecimento express. Joguei muito futebol, talvez a principal convergência da cultura inglesa com a brasileira, entre amigos no Hyde Park, na pelada institucional organizada pelo coordenador do curso e também oficialmente contra outras faculdades. Pedi pra minha mãe enviar meu cavaquinho pelo correio para eu me juntar a um grupo de músicos por hobby e encantar os japoneses com chorinhos e sambas em festas brasileiras.

Mas a rotina principal era enfrentar pints de cerveja e muito, muito estudo. O nível dos debates e da exigência era alto. Recém-formado, aprendi com colegas que já eram profissionais com vivência na área. Mesmo sendo um problema global, a mudança do clima e a preservação do meio ambiente eram vistas por meus peers por outras perspectivas, em contextos, situações econômicas e maturidades tecnológicas diferentes. Confrontaram minhas verdades e, de certa forma, eu também os fiz questionar as deles. Estes debates, por vezes acalorados, me instigaram a prestar mais atenção a tudo em volta e a enxergar as oportunidades de mercado com outros olhos. O Reino Unido, que sempre liderou discussões, e a comunidade europeia viviam em 2005 a euforia do Protocolo de Kyoto. Descobri ali o que eram os instrumentos econômicos de regulação ambiental. Também, ganhei coragem para ser empreendedor, afinal, ficar sozinho em um lugar tem muito a ver com medir e enfrentar riscos, tentar, acertar e errar. Não tem ninguém ali pra dar um tapinha nas costas. Isso obriga a sair da zona de conforto, dá confiança, impulsiona a meter a cara e fazer algo para transformar o status quo.

Talvez por isso os meus 10 anos de formatura coincidam com uma década de empresa. Um mês depois de desembarcar da Inglaterra, junto com meus sócios, fundamos a WayCarbon, em agosto de 2006. Descobri semana passada, lendo sobre empreendedorismo, que me unir a três cabeças tão diferentes aumentou minha chance de sucesso. As ideias para montar o negócio, que começaram com um grupo de estudo, se refinaram e evoluíram.

Na época, havia a necessidade de convergir ações, criando um ambiente de cooperação internacional sem precedentes. Os marcos regulatórios internacionais amadureceram na medida em que os países conseguiram negociar e avançar na abrangência, nos prazos e nos resultados objetivos do acordo. Assinado em 2004, o Protocolo de Kyoto criou as bases para a utilização de instrumentos de mercado na regulação das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE). Este pano de fundo criou uma oportunidade de negócio para países em desenvolvimento, que passaram a participar em uma estrutura de incentivos financeiros para investimentos em atividades que reduzam emissões. Assim, Kyoto foi um marco sem precedentes por estabelecer mecanismos globais para redução de emissão de GEE. A WayCarbon aproveitou isso no momento certo. Hoje sou duplamente feliz, pois pude aplicar o conhecimento adquirido nas minhas duas áreas de estudo, a de relações internacionais e a de economia ambiental, diretamente na minha rotina profissional.

Em dez anos, mesmo que as mudanças climáticas continuem sendo um dos principais desafios do globo, muita coisa mudou, mas o networking do período em Londres segue forte. Tenho colegas espalhados pelo mundo, em posições de destaque, e, pós-Acordo de Paris, eles concordam comigo que as lições de Kyoto criam as bases para o avanço da agenda climática. Existe urgência em limitar as emissões de GEE, isso porque a ciência reforça que um aquecimento médio global superior a 2ºC pode ter consequências irreparáveis, como a diminuição de área de cidades costeiras e a perda de biomas e de biodiversidade, como os corais. Assim, a agenda de mitigação (foco de Kyoto) passa a ser acompanhada por uma agenda de adaptação, que visa preparar os sistemas humanos e naturais para “conviver” em um mundo mais quente. O acordo de Paris também avançou ao interromper a segmentação global entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, tornou claro que a ação dos BRICS, junto com os países ricos, é fundamental para a estabilização da concentração de GEE na atmosfera. Nesse contexto, a WayCarbon acompanhou as transformações, tornando-se uma empresa de base tecnológica, desenvolvendo softwares e modelagem ambiental para o monitoramento de emissões de gases (CLIMAS) e do impacto das mudanças climáticas (MOVE).

Entre a Inglaterra e o Brasil, entre Kyoto e Paris, uma década se passou. Os diversos momentos e contextos nos ensinam, se somam, direcionam, trazem lições. Na minha residência estudantil, aprendi que a paciência pode ser testada no último nível. Chegando da balada, volte e meia alguém ligava uma torradeira para esquentar um toast e se distraía no chuveiro ou caía direto no sono. O alarme de incêndio acordava o prédio às três da manhã! Todos desciam e se encontravam vestidos como podiam (de pijama, cobertor, sem chinelos) no ponto de encontro. Alguém precisava subir e concluir que era apenas uma torradeira soltando fumaça e que não havia risco de incêndio. Era o procedimento correto, uma disciplina necessária, mesmo que nossos músculos estivessem duros de frio. Dava muita raiva na hora, mas agora dou risada da situação. Ironia do destino ou não, avaliar riscos é o que fazemos hoje na WayCarbon. E avaliar riscos é o que teremos que aperfeiçoar daqui pra frente, se quisermos enfrentar com determinação e coragem os desafios de um mundo mais quente e que segue em constante transformação.

amigo do clima

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Henrique é graduado em Relações Internacionais, Pós Graduado em Tecnologias Ambientais e Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Co-fundador e CEO da WayCarbon, é um eterno otimista e acredita que as pessoas possuem todo o potencial de transformação e mudança que o mundo precisa. Vive o desafio de empreender e de compartilhar os valores da sustentabilidade. Mora na cidade, mas gosta mesmo é da roça: de comida no fogão a lenha, das cavalgadas pelo Rio Indaiá e dos casos que parecem mentira.

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