Refugiados Climáticos: o que o ESG tem a ver com isso?
Alterações Climáticas à Vista, para quem quiser ver
Conteúdo originalmente publicado no LinkedIn Pulse pela Professora Andréa Ventura.
Nos últimos meses, é quase impossível acessar quaisquer fontes de informação como jornais ou sites de notícias e não se deparar com notícias sobre questões climáticas. Furacões, enchentes, chuvas torrenciais, ondas de calor, entre outras temáticas, passaram a fazer parte constante das manchetes.
Muitos dirão que esses problemas sempre existiram. E é verdade. Mas a ciência demonstra que essas questões estão crescendo em um ritmo preocupante no mundo. Inúmeras pesquisas comprovam que os chamados eventos climáticos extremos estão mais frequentes e intensos. O recente relatório publicado em agosto de 2021 pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change / Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima)1, organização político-científica criada no âmbito da ONU e composta por 195 países membros, entre os quais o Brasil, não deixa dúvidas: a humanidade está diante de uma crise climática sem precedentes. E a velocidade e intensidade com que esses fenômenos estão ocorrendo são responsabilidade humana.
Este relatório, que sistematiza e analisa pesquisas científicas ao redor do mundo, apresenta o mais alto nível de confiança nas conclusões dos cientistas até o momento. Por essa razão, ele utiliza a expressão “muito provável” para referir-se às probabilidades ali apresentadas. Em termos científicos, isso é equivalente a 90-100% de certeza daquele resultado.
Importante, aqui, fazer um reforço. Não é o IPCC quem realiza essas investigações. Ele apresenta, de maneira sistematizada, o que está sendo concluído por milhares de pesquisas em todo o globo. Assim, quando algumas pessoas colocam em dúvida os resultados apresentados por esse organismo multilateral, apontando possíveis interesses políticos por detrás dessas informações, em realidade estão colocando à prova a comunidade científica mundial.
As pesquisas apontam, com altíssimo grau de probabilidade, que estamos ultrapassando uma fronteira importante enquanto humanidade. Já chegamos a um aquecimento médio do planeta de 1,2oC. A meta global vigente é que se possa buscar que esse aumento não ultrapasse 1,5oC, sob pena de termos uma intensificação ainda maior do problema, com grandes custos para todas as espécies de vida no planeta.
Todos os países e suas respectivas organizações precisam assumir responsabilidades para poder reduzir os impactos das mudanças climáticas¹, seja através de ações que permitam a sua mitigação, pela redução da emissão de gases de efeito estufa ou mesmo através de atividades que promovam adaptação das atividades humanas à nova realidade, por meio do desenvolvimento de formas de lidar com os impactos trazidos pelas alterações no clima. Mas os esforços mundiais ainda são tímidos.
Todas essas questões impactam diretamente a temática dos investimentos ao redor do mundo. Todos os olhos estão (ou ao menos deveriam estar) voltados para o que cada país, setor produtivo e empresa está fazendo, para auxiliar no enfrentamento às mudanças climáticas. Essas mudanças, muitas vezes vistas em seu aspecto mais notório no momento do choque extremo, quando milhares de vidas são perdidas com a chegada de um furacão, por exemplo, também trazem impactos crônicos, ligados à qualidade de vida de pessoas no longo prazo e aos direitos humanos. E isso está diretamente associado aos chamados fatores sociais dos investimentos. O “S” da sigla ESG.
Entre os principais impactos sociais trazidos pelas mudanças climáticas está a crescente onda dos chamados “refugiados climáticos” ou ainda “refugiados ambientais”, expressões ainda não reconhecidas legalmente. Por conta dessa inexatidão jurídica, muitos usam o termo “migrantes ambientais”.
Já existem casos ao redor do mundo de pessoas que precisaram abandonar lar devido à destruição causada pelos chamados desastres “naturais” ou pelo aumento do nível do mar, por exemplo. As previsões da ONU² são de que, até o final de 2050, cerca de 200 milhões de pessoas poderão ser forçadas a deixarem seus locais de origem. Na atualidade, esse número já chega a 25 milhões de pessoas. As alterações do clima estão causando problemas críticos no acesso à água e à alimentos, condições básicas para a vida humana. E no Brasil não é diferente.
O Brasil também “no olho do furacão”
Claro que, no caso brasileiro, a preocupação não está no aumento da ocorrência de furacões ou tsunamis. Entretanto, os cenários climáticos desenhados pelos cientistas³ trazem grande preocupação ao país. Em especial, o Brasil deve sofrer forte impacto em seus recursos hídricos, especialmente por conta de alterações nos padrões de precipitações das chuvas e aumento da temperatura.
As pesquisas retratam consequências esperadas (algumas delas já vivenciadas) para cada região do país até o final do século XXI, caso os cenários de alta emissão de carbono se mantenham. A região Norte deverá experimentar aumentos substanciais de temperatura e se tornar mais seca. Boa parte da cobertura florestal tropical poderá se transformar em áreas similares às savanas, com grande perda de biodiversidade. Isso deverá trazer grandes impactos, inclusive, às regiões Sudeste e Sul do Brasil, diante da perda de umidade e impacto nas chuvas nessas regiões. O aumento no número de dias secos e quentes deve impactar também na saúde da população, além de provocar o aumento dos incêndios florestais. Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, além do aumento da temperatura, há previsões de picos extremos de chuva e de ondas de calor, afetando as áreas urbanas, a agricultura e a saúde populacional.
A Região Nordeste, juntamente com a Norte, deverá sofrer as maiores consequências das mudanças climáticas, com aumentos importantes de temperatura ampliando a escassez de água e afetando negativamente a biodiversidade na caatinga. A escassez de água, o aumento no número de dias secos e das ondas de calor deve impactar significativamente a agricultura e a saúde da população.
Os problemas previstos com disponibilidade de recursos hídricos e, especialmente, seus impactos diretos na agricultura, deverão amplificar ainda mais a migrações de populações que venham a ser atingidas pela falta de água e alimentos. Se já vivenciávamos um processo migratório das regiões Norte e Nordeste do país para outras regiões em busca de melhor qualidade de vida, vale refletir o quanto essa situação não será amplificada com o agravamento das mudanças climáticas.
O olhar do ESG para além do clima
É muito difícil dissociar as questões sociais e ambientais. Em realidade, muitos autores afirmam a imprescindibilidade de tratar as temáticas socioambientais efetivamente entrelaçadas4. Para a vida humana, elas o são. Então, como pensar em investimentos que levem em conta essa realidade? Que considerem os impactos das atividades produtivas sobre todas as pessoas direta ou indiretamente por elas impactadas?
Os problemas ambientais em geral, e as mudanças climáticas em especial, estão entre as grandes tendências que devem ser observadas pelos tomadores de decisão, inclusive por seus impactos sociais. A questão é que, no caso do clima, há um agravante: as pessoas e os países mais vulneráveis do mundo são os que mais fortemente serão impactados por essas mudanças5. Isso deverá ampliar ainda mais a problemática da desigualdade social e da distribuição de riquezas no mundo, impactando diretamente o mundo dos negócios e dos investimentos.
Desta forma, o setor produtivo de cada país deve avaliar cautelosamente quais são as principais questões sociais ligadas ao clima que afetam seu negócio, considerando para isso não apenas seus funcionários e clientes, mas toda a cadeia de suprimento. Certamente, sua localização geográfica terá um peso importante nessa análise. Há muitos instrumentos que podem auxiliar nesta avaliação, a exemplo dos mapas de materialidade.
Importante observar que, para além dos riscos trazidos pelos impactos sociais das mudanças climáticas, elas também representam grandes oportunidades de investimentos. Há toda uma nova gama de serviços que podem ser pensados, por exemplo, para atender às necessidades de saúde que surgirão. Considerando-se especificamente a questão dos refugiados, há grandes possibilidades de ampliação dos processos de urbanização. A migração das áreas rurais para as urbanas afeta a sociedade em aspectos econômicos, ambientais, sociais e de estilo de vida. Há uma necessidade crescente de desenvolvimento de infraestrutura e empresas tratando de questões sociais e ambientais relacionadas à vida urbana, a exemplo de provimento de novos serviços de moradia, transporte, saúde e educação.
Levando-se em conta o grande impacto das alterações climáticas na produção agrícola, será imprescindível o desenvolvimento, por exemplo, de sementes mais resistentes e de novos sistemas de irrigação. Isso sem falar nos serviços logísticos, que deverão ser repensados frente à nova realidade que se aproxima.
No tocante à mitigação e à necessária transição de setores de alta emissão de gases de efeito estufa (a exemplo de indústrias, do setor automobilístico e dos modelos tradicionais de agronegócios) para uma estrutura mais sustentável, é importante lembrar que esses setores empregam inúmeras pessoas. Assim, qualquer processo de transição deve ser realizado de maneira cuidadosa e responsável, para não gerar impactos sociais negativos como desemprego e pobreza. É necessário realizar uma “transição justa”.
Os refugiados são apenas um exemplo de novas configurações sociais que estão surgindo no mundo por conta das mudanças climáticas e que exigirão das empresas e países uma nova forma de atuação. O olhar dos tomadores de decisão, sejam empresas ou investidores, precisa ser direcionado para eles. Depois, pode ser tarde.
(1) VENTURA, A. C.; FARIAS, L. Q. ; PAIVA, D. S. ; GOMES, G. A. M. M. ; ANDRADE, J. C. S. . Carbon market and global climate governance: limitations and challenges. International Journal of Innovation and Sustainable Development, v. 9, p. 28-47, 2015
(2) Relatório publicado em 2009 pelo Instituto para o Meio Ambiente e Segurança Humana da Universidade das Nações Unidas, realizado pela ONG Care e pelo Centro para a Rede Internacional de Informação em Ciências da Terra (CIESIN), da Universidade de Columbia.
(3) Relatório de Clima, publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) em 2007.
(4) VIOLA, E. J., & LEIS, H. R. O Ambientalismo Multisetorial no Brasil para Além da Rio-92: O Desafio de uma Estratégia Globalista Viável. In VIOLA, E. J. et al. Meio Ambiente, Desenvolvimento e Cidadania: Desafios para as Ciências Sociais. São Paulo. 2001; Florianópolis: Cortez; Ed. da UFSC
(5) VENTURA, A. C.; FERNANDEZ, L. ; ANDRADE, JOSÉ CELIO SILVEIRA . O Potencial das Tecnologias Sociais de Convivência com o Semiárido para a Geração de Sinergia entre Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas: um caso ilustrativo. REVISTA ECONÔMICA DO NORDESTE, v. 50, p. 65-83, 2019.