Destruição ambiental: um problema com consequências desproporcionais
Existe um consenso científico de que o planeta está esquentando¹. É consenso, também, que a mudança do clima está sendo influenciada pelo aumento das emissões de gases de efeito estufa (GEE) relacionadas às atividades humanas. Os reflexos desses aumentos geram preocupação, uma vez que afetam o equilíbrio da natureza e resultam em riscos à saúde, perda de biodiversidade, insegurança alimentar, aumento de enchentes e tempestades, dentre outros danos.
A intensidade dos efeitos do aumento da temperatura do planeta, no entanto, não ocorre de maneira proporcional, ainda que seja coletiva. Regiões mais pobres, com poucos recursos, muitas vezes não conseguem evitar ou reduzir essas resultantes, bem como criar oportunidades de adaptação e, dessa maneira, tendem a ser mais impactadas. Estas áreas, em geral, abrigam pessoas com recortes étnico raciais, de gênero e socioeconômicos bem definidos.
A preocupação com a desproporcionalidade no qual a degradação ambiental atinge diferentes grupos de pessoas é a tônica pela busca em remediar essas disparidades, presente nos conceitos de justiça ambiental e justiça climática.
O termo justiça ambiental surge nos anos 90, a partir de uma série de movimentos registrados nos Estados Unidos. Um dos marcos iniciais foi a ação coletiva “class action”, movida por Margareth Bean e por moradores de Houston, no Texas, contra uma empresa de resíduos que tinha autorização para abrir um aterro sanitário em um bairro de classe média, majoritariamente negro.
Segundo Acselrad, Herculano e Pádua (2004), o conceito de justiça ambiental engloba princípios voltados a garantir que as consequências da degradação do espaço coletivo não sejam sofridas de maneira descomunal por nenhum grupo de pessoas – seja racial, étnico ou de classe.
Impulsionado pela emergência climática, o conceito de justiça climática emerge como mais uma frente para garantir paridade e priorização àqueles mais vulneráveis frente a destruição da natureza. Milanez e Fonseca (2010) explicam que o termo é um desdobramento do conceito de justiça ambiental, frequentemente usado para fazer menção à assimetria em relação aos impactos sofridos e as responsabilidades pelas causas e efeitos da mudança do clima.
A responsabilização sobre causas e efeitos é um dos temas centrais na busca por justiça ambiental e climática. Os lugares que estão – e tendem a continuar – sofrendo com o aumento da temperatura no planeta são aqueles que, historicamente, não contribuíram – ou não de maneira significativa – com o aumento das emissões de GEE. É necessário, nesse contexto, que os responsáveis por estes antecedentes assumam seu ônus e promovam ações com celeridade para mitigar e reduzir os danos.
Discutir mecanismos de respostas para a mudança do clima é fundamental e condicionante para a manutenção da vida no planeta. Contudo, dada a desproporção de consequências, é fundamental que aqueles que serão penalizados com mais rigidez tenham prioridade visto que, muitas vezes, sua participação nas atividades que contribuem com a alteração da temperatura do planeta é inversamente proporcional às reações que receberão em função desta.
A desigualdade como revés para justiça ambiental e climática
Em um contexto de desigualdade social aguda, à medida que desenvolvimento e preservação de ecossistemas são tratados como antagônicos, grupos historicamente marginalizados se mantêm cada vez mais expostos às consequências da destruição do meio ambiente, e em constante ameaça da não garantia dos seus direitos humanos.
A desigualdade social não é um processo recente. Ela remete à períodos históricos pautados pela exploração e escravização de populações negras e indígenas. Esses fatos são responsáveis por criar bases que acentuam até os dias atuais a condição de exclusão dessas populações, gerando ausência de serviços básicos, investimentos públicos escassos, dificuldade de acesso à cultura e educação, além da má distribuição de renda.
As consequências da desigualdade, visíveis nos grandes centros urbanos, sobressaltam nas periferias: fome, violência, mortalidade, desnutrição, alto desemprego, infraestrutura precária e moradia em locais inapropriados. Nas regiões onde essas conjunturas se enfatizam também são mais perceptíveis os efeitos de eventos climáticos extremos como enchentes, inundações, deslizamentos e alagamentos.
O Brasil, segundo estudo divulgado pelo World Inequality Lab, é um dos países mais desiguais do mundo. Aqui, 10% mais ricos ganham quase 59% da renda de total nacional². Esse abismo de desigualdade social pode se tornar ainda maior com a estimativa de diminuição da renda média em 83% em função do agravamento da crise climática, segundo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, da sua sigla em inglês), divulgado pela Folha de São Paulo³.
Além dos prejuízos estruturais dos eventos extremos, a crise climática também afeta a capacidade produtiva e geração de energia, com aumento da seca e alteração nos volumes de chuva, visto que maior parte da matriz energética do país é hídrica⁴. Produtos – como alimentos por exemplo – podem ter seus preços alterados em função da variação do custo de energia ou do impacto sobre os insumos – advindos do agro -, afetando o poder de compra da população e frequentemente tornando-se inacessível para as camadas mais pobres. Esse ponto é fundamental para entender a necessidade de menos morosidade para proteção dos mais vulneráveis pela degradação ambiental e a relação desse tema com outros como a fome e insegurança alimentar.
A falta de justiça ambiental desencadeia o surgimento de um fenômeno social chamado de racismo ambiental, que consiste na discriminação de populações vulnerabilizadas, periferizadas ou compostas de minorias étnicas. A criação deste termo foi atribuída ao ativista afro-americano Benjamin Franklin Chavis, entre as décadas de 50 e 60.
Caminhos para fortalecimento da agenda
Em novembro de 2022, em Sharm El Sheikh, no Egito, foi anunciada na 27ª Conferência das Partes (COP) a criação de um fundo de perdas e danos para países vulneráveis mais impactados pelas mudanças climáticas5. A inclusão deste ponto no texto final da COP é um avanço para o tema de justiça climática.
Os acordos e compromissos globais são fundamentais para atuar na crise climática. A garantia de justiça ambiental e climática, no entanto, deve ser desdobrada em diferentes níveis e entre diferentes atores, visto que a responsabilidade coletiva é um dos caminhos para fortalecimento dessa agenda.
A sociedade civil possui destaque entre os atores que participam coletivamente das ações por justiça ambiental e justiça climática. Seu protagonismo consiste na sua capacidade de reunir diferentes agendas, ampliando a diversidade e articulando demandas mais urgentes dos grupos que são colocados à margem. O coletivo de vozes da sociedade civil contribui para maior pressão governamental, no nível local e global, bem como pela maior ambição de compromissos climáticos.
As instituições públicas devem garantir essa justiça por meio de políticas públicas que mitiguem e adaptem as cidades e demais territórios para essas mudanças climáticas que já estão acontecendo. Como exemplo disto, temos várias cidades brasileiras que iniciaram seu plano de ação climática, no qual cabe a sociedade civil monitorar e cobrar o desenvolvimento desses planos e o desenvolvimento da agenda ambiental e climática em suas regiões, estados e/ou municípios, assim como contribuir com organizações sociais que estão amplificando essa discussão.
Além disso, essa agenda também pode e precisa ser fortalecida por meio da iniciativa privada. As empresas têm sido demandadas a ganharem protagonismo na agenda climática, com foco em reduzir suas externalidades negativas ocasionadas por meio de suas atividades. Deste modo, as empresas podem apoiar a justiça climática assumindo compromissos de redução de emissões – preferencialmente metas baseadas na ciência (SBT) ou NetZero -, bem como contribuindo com as populações em situação de vulnerabilidade próximo das suas operações para capacitar sobre questões climáticas e apoiar essas comunidades a criarem tecnologias e inovações para mitigar esses os efeitos da crise climática em seus territórios.
Diante do exposto, percebe-se que justiça climática é uma agenda multistakeholder e crítica. Endereçar esses efeitos, neste momento, pode ainda ser uma oportunidade para muitos atores, enquanto para alguns, é questão de sobrevivência. Ter urgência coletiva, envolvendo governos, empresas e sociedade civil para lidar com essa realidade de forma estratégica, é o melhor caminho para que seja possível ter avanços significativos na garantia dessa justiça, ampliando os ganhos, reduzindo os custos e mitigando riscos para as pessoas, para os negócios e para o planeta.
Referências
¹ Disponível em: <https://climate.nasa.gov/scientific-consensus/>. Acesso em: 09/01/2023
² Disponível em: <https://wir2022.wid.world/www-site/uploads/2022/03/0098-21_WIL_RIM_COUNTRY_SHEETS.pdf> Acesso em 09/01/2023.
³ Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/02/brasil-esta-entre-economias-mais-prejudicadas-por-crise-do-clima-aponta-onu.shtml> Acesso em 10/01/2023.
⁴Disponível em: <https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica#:~:text=A%20matriz%20el%C3%A9trica%20brasileira%20%C3%A9,em%20sua%20maior%20parte%2C%20renov%C3%A1vel.> Acesso em 12/01/2023.
5 Disponível em: <https://www.wsj.com/articles/cop27-agrees-on-loss-and-damage-fund-for-vulnerable-countries-officials-say-11668866219?mod=hp_lead_pos2> Acesso em 16/01/2023.
ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, Fundação Ford, 2004.
MILANEZ, Bruno; FONSECA, Igor Ferraz da. Justiça climática e eventos climáticos extremos: o caso das enchentes no Brasil. Boletim Regional, Urbano e Ambiental – Artigos. IPEA, 2010. Disponível em